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  • Foto do escritorElio

O deserto e a chuva


Existem desertos e desertos. Eu fiquei um bom tempo com o Dário no Sahara.

Dário era um dromedário, que tive que comprar para poder entrar no deserto sem ser obrigado a ter um guia.

A imagem que muitos fazem daquele monte de dunas de areia é verdadeiro, mas não para todo o deserto. Lá chove e tem vegetação.

Sua borda aumenta e diminui dependendo dos ciclos de chuvas e ventos, como se ele fosse um pulmão de areia respirando, e a nossa Floresta Amazônica depende desse ritmo para poder existir!

Mesmo nas partes mais áridas existe vida além dos oásis. Os oásis, com suas águas bem controladas pelos habitantes locais, permitem que se encontre um bom descanso com sombra, fruta e água fresca. Realmente um oásis.

Existem chuvas e chuvas. Existem aquelas que são como os jovens, cheias de energia, que desaguam uma enorme quantidade e duram pouco. Existem outras que são médias, duram um pouco mais, mas não possuem muita intensidade. Finalmente existem outras, que são como nós mais velhinhos, mais suaves, que vem lentamente, persistem e depois de um tempo longo vão se apagando e o tempo volta a ficar sem chuva.

Todas são importantes e deixam suas marcas na areia.


As chuvas intensas e fortes, ao chegarem na areia, ávida por absorver água, a revolvem e criam aquela camada de areia molhada encharcada. Abrem cursos por onde a água escorre, mas, por durarem pouco, secam rapidamente. Esses cursos têm uma camada superficial dura mas, se não chover mais, o vento aos poucos vai destruí-los.

As chuvas médias ajudam a molhar a areia e percorrem, se ainda existirem, os caminhos deixados pelas chuvas fortes.

Elas ajudam a abastecer o subsolo, mas também após um tempo um pouco maior do que as primeiras, deixam a superfície seca.

Finalmente temos as chuvas que vem devagar, persistem, e demoram para ir embora. Elas vão molhando devagar, reforçando os caminhos, penetrando e deixando a areia molhada no sub-solo, protegida contra a ação do calor estorricante.

São as que alimentam os lençóis abaixo das camadas de areia e permitem que os oásis existam, que a vida floresça.

Às vezes acho que o nosso cérebro é como o deserto. Olhando os meus netos vejo como eles são ávidos por aprender. Ouvem tudo, lêem tudo, nada demora mais do que alguns minutos e já partem em busca de coisas novas, mas quando querem resolver um problema mergulham nele até que seja resolvido (ou choram com raiva até que o resolvam!). Essas chuvas fortes de conhecimentos criam sulcos, caminhos pelos quais as futuras águas irão passar e que irão caracterizar o modo de pensar de cada um deles. Elas são necessárias, mas não suficientes, para acabar com a aridez do deserto.

São necessárias as chuvas médias, que acontecerão quando eles estiverem após a infância. Essas demoram mais, por serem razoavelmente intensas, reforçam as marcas deixadas pelas fortes chuvas de conhecimento e aprendizado. São elas que criam os pequenos canais que interligam ou alimentam as marcas profundas. O modo de pensar e ser desse cérebro já está criado nas primeiras chuvas fortes, agora apenas interliga, refina, alimenta e estrutura as conexões dos caminhos da água.

Finalmente existem as chuvas da maturidade. Aquelas que continuam alimentando o deserto, ajudam a vida a florescer nos oásis graças ao trabalho feito pelos outros tipos de chuva, mas não são capazes de criar novos sulcos, novos caminhos.

Essa minha analogia me permitiu passar horas divertidas refinando o modelo.

Existem pessoas que são um verdadeiro deserto do Atacama. Lá praticamente no chove. Nunca absorveram conhecimentos, são incapazes de criar algo e apenas se limitam a ser areia ao sabor dos ventos. Outros são como o Sahara e tentam constantemente absorver conhecimentos. Eventualmente, tornam-se capazes de criar algo intelectualmente.

Note que, mesmo num cérebro com sulcos fortes, se houver alguma tempestade, ela será capaz de apagar os sulcos antigos e criar sulcos novos. Portanto mudar o modo de pensar ao longo da vida, corrigir sulcos errados, é algo muito positivo, e que somente pode ser feito por quem aprende a usar a água como nos oásis.

De fato, nos oásis, a quantidade de água não é grande, mas com paciência o homem constrói canais e vai dirigindo a água onde ele quer, criando canais que ele pode abrir e fechar com algumas madeirinhas, e distribuir a pouca água entre as cada vez mais numerosas plantas que florescem por lá. Com isso o oásis cresce.

Mas essa analogia vai mais longe ainda. Tomemos por exemplo uma areia onde haja excesso de água, como uma praia. Nela não há sulcos. As ondas do mar se esparramam pela praia e depois recuam deixando aquela praia lisa. É como se o excesso de informação se repetindo frequentemente não permita que esse cérebro crie sua personalidade. Ele simplesmente é neutro, aceita o que lhe é repetido e, sob a ação das ondas, faz o que lhe mandam sem pensar.

Aí reside minha reflexão sobre o que eu chamo de “Cultura Youtube” ou das grandes mídias.

A grande maioria das pessoas acha que conhece alguma coisa pois viu no Youtube ou foi dito num jornal da televisão.

YouTube é uma ferramenta maravilhosa, nele se encontram muitas informações úteis.

O problema é que qualquer um pode publicar o que quiser, praticamente sem filtros, e emitir as opiniões mais estúpidas imagináveis. Quem assiste, na maioria das vezes, não questiona, e aceita aquilo como uma verdade.

Vou te dar um exemplo: 96% dos terraplanistas dos Estados Unidos, respondendo a uma pesquisa, disseram que tomaram contato com esta teoria através do YouTube.

Como são pessoas que não foram bem regados pelas chuvas do deserto, aceitam isso como verdade. E não adianta querer contra argumentar, mostrar fatos óbvios que desmintam o que eles crêem. Eles não aceitam evidências.

Numa das perguntas de uma pesquisa feita nos EUA, ao contestarem uma prova dos cientistas que dizia: ”Nós temos fotos feitas pelos astronautas que mostram que a Terra é esférica” a resposta mais frequente foi: “Tudo isso é uma grande conspiração criada para manter a população ignorante e submissa! As fotos são falsas e o homem nunca foi ao espaço!”

Sim, talvez você, como eu, dê uma risada e pense em deixar de lado essas pessoas, porém o problema é muito pior do que se pensa.

Fazer tal afirmação é dizer que milhares de pessoas envolvidas no trabalho de exploração do espaço, da engenharia, da matemática e da física estão mentindo! É dizer que estas grandes pessoas se vendem e mentem para sustentar tal conspiração. Isso é grave.

Se não lutarmos constantemente para acabar com essa ignorância intelectual, este grupo continuará crescendo em número, e poderá chegar o dia em que eles exijam que nas escolas seja ensinado o terraplanismo como sendo uma teoria alternativa aos conhecimentos científicos!


Isto já aconteceu com o Criacionismo. Ainda bem que foram tomadas medidas para evitar que tal coisa acontecesse.

Não se trata aqui de ser a favor ou contra qualquer crença religiosa. Religião é crença e cada um pode crer no que quiser e devemos respeitar a crença individual. O problema ocorre quando as crenças se misturam com a ciência, e vice-versa. Ciência se constrói com fatos racionais, demonstrações, comprovações e muito, muito trabalho. Tenho ótimos amigos cientistas com as mais diferentes matizes de crença religiosa, inclusive os ateus, mas eles sabem não misturar as coisas.

Para os terraplanistas, essa crença é similar a uma religião. Eles crêem e pronto. Qualquer prova contrária é conspiração.

Eles criaram seu próprio mapa da Terra e nele o Polo Norte é o centro da pizza e as bordas são uma parede de gelo, que seria a Antártida, que impede às águas dos oceanos de cairem (?).

Usando o mapa que eles criaram, ao ser perguntado na pesquisa, como ele explica o fato de os aviões de passageiros não necessitarem de reabastecimento durante a viagem entre Chile e Nova Zelândia, pois a distância seria muito maior do que a autonomia das aviões, a resposta de um crente foi: “Os fabricantes de aviões mentem sobre a verdadeira autonomia!”.

Claro, eles também são parte do grupo que conspira contra a população do planeta… ou seja, a indústria aeronáutica mente, os cientistas mentem, todos mentem!

Isto é impressionante.

Segundo dados de pesquisa da DataFolha, o Brasil é um dos países do mundo com o maior números de adeptos, com cerca de 11 milhões de pessoas acreditando no terraplanismo, perdendo apenas para os Estados Unidos.

Em resumo, o importante para que o deserto não fique árido e possa transformar-se em um oásis, não é a quantidade de água somente o que é importante. É a qualidade da água. Filtre a água, não permita que água podre e poluída irrigue o teu deserto, sempre verifique de onde vem as informações, busque as origens dela, controle sempre onde, quem escreveu, buscou as informações para escrever.

Por exemplo, não creia no que escrevi apenas por ser meu amigo. Neste blog existem duas coisas bem separadas: uma é a opinião minha pessoal, uma analogia entre o deserto e o cérebro, que está sujeita a opiniões contrárias (que serão bem vindas pois ajudará a melhorar os meus conceitos) e outra, que não tem opinião minha, que são os fatos da pesquisa que citei. https://physicsworld.com/a/fighting-flat-earth-theory

Então cito a fonte da pesquisa e, antes de escrever, verifiquei a sua veracidade e a metodologia empregada para a coleta de dados e a seriedade de seus autores. Portanto não posso discordar dos dados coletados na pesquisa, apenas posso concordar ou discordar da interpretação que eles deram aos dados. Neste caso eu concordei.

Dá trabalho fazer isso? Sim, mas é o que garante a qualidade da água no meu deserto.

Obrigado e até o próximo blog, onde espero poder contar o que vi na viagem que começarei amanhã, de bicicleta, indo da França até Roma.

Elio

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