O que é mais bonito: o que a natureza faz ou o que o homem faz? Ou talvez essa mistura entre o homem e a natureza seja o que nos toca por dentro?
Recentemente fiz uma pequena viagem com a bicicleta. Pouco mais de 380 km até a cidade de Barcelona. A desculpa era rever duas amigas que não via há mais de 15 anos e que havia conhecido em Los Roques (Venezuela).
Foi a ocasião perfeita para conhecer a costa sul da França, aceitar o desafio de atravessar os Pirineus em bicicleta e conhecer melhor a famosa cidade catalã.
Meu companheiro de aventuras, Pierre, conhece bem a região, pois ele a percorreu a pé várias vezes. Aliás, percorreu fazendo corridas a pé.
No primeiro dia fizemos quase 100 km. Atravessamos a região plana que nos levou aos pés dos Pirineus, tendo o mar Mediterrâneo à esquerda e lagoas de água salgada, à direita.
Essa região é uma das regiões com ventos mais fortes da Europa. Habitualmente, os campeonatos de windsurf e kite são feitos ali.
Não é difícil descobrir o motivo de sempre termos ventos acima dos 20 ou 30 nós por dias inteiros. Não raro se tem ventos constantes de 40 nós! Fiz um esboço para explicar:
As frentes frias vêm do norte e, ao chegarem na França, entram em um “funil” formado entre os Pirineus e o Maciço Central (grupo de montanhas do centro da França) e, ainda outro, formado pelo Maciço Central e os Alpes.
São estes ventos fortes que tornam o Golfo de Lyon tão terrível para os velejadores.
Estas duras condições de navegação estendem-se até a Córsega e a Sardenha, separadas pelo temido estreito de Bonifácio que, além de raso (as ondas crescem), ainda faz outro funil com a Sardegna. Lá, os navios comerciais de bandeira francesa e italiana são proibidos de passar devido a alta periculosidade.
Apenas para exemplificar: Em 15 de fevereiro de 1855 uma dura tempestade pegou a fragata francesa Sèmillante, no estreito de Bonifácio, e a destruiu contra as rochas. Os 750 soldados que estavam a bordo morreram. O faroleiro enlouqueceu ao ver tantos corpos dilacerados pelas ondas do mar sobre as rochas. Deve ter sido uma visão apocalíptica.
Enfrentar este vento com bicicleta, não é fácil. Nossas bicicletas andavam inclinadas, as rajadas muitas vezes nos empurravam para a beira do caminho.
Como ambos somos dois velhinhos, o ritmo das pedaladas era suave e, a cada duas horas, uma paradinha para tomar fôlego. Ao meio dia, almoçávamos o nosso pãozinho com um pouco de salame. A bebida, água, e a sobremesa, alguma fruta que encontrávamos no caminho. As romãs eram abundantes, vermelhas, saborosas. Bastava parar numa árvore, escolher aquela que estivesse começando a abrir e comer! Nossas roupas foram manchadas muitas vezes.
Ao fim do primeiro dia, o objetivo foi achar um bom lugar para dormir e tomar um belo banho, pois precisaríamos de energia para a dureza: subir os Pirineus.
No dia seguinte a coisa começou leve. Subidas e descidas que nos levavam de novo na beira do mar.
A cada subida um descanso e o prazer de ver aquele mar azul, cristalino, com as marcas do vento forte na sua superfície. O céu azul sem nuvens, ar puro, o suor escorrendo, o coração batendo forte e um sorriso maroto de cumplicidade trocado com o meu bom amigo, enquanto sentados numa pedra qualquer, bebíamos um gole de água.
Estávamos felizes. Admirávamos a “arquitetura" da natureza, buscávamos nos detalhes as mensagens que ela nos falava.
Notar a difração e a refração das ondas, ver as rajadas, estimar as posições dos centros de alta e baixa pressão, ver a vegetação mudar em função da altitude. Tudo era motivo para um longo silêncio e uma troca de reflexões.
Isto nos torna crianças de novo: a alegria de descobrir, o encantamento ao se integrar com a natureza. Que bonita a “arquitetura" da natureza.
Além disso, depois das subidas, vinham as descidas e aí era pura alegria para mim.
Eu peso 20 kg a mais que o Pierre, então nas subidas ele sempre é mais rápido que eu, afinal ele leva 20 kg a menos até o topo. Porém nas descidas, inevitavelmente, eu sou mais rápido.
Isso foi motivo de boas conversas entre nós, tendo em vista que os corpos caem por igual, sem depender da massa. Pelo menos é o que Galileu descobriu e nos ensinaram na escola. Então como explicar que eu sou mais rápido nas descidas? Muitas vezes ficávamos lado a lado nas descidas, sem pedalar e, inevitavelmente, a minha bicicleta era mais rápida.
Após muitas reflexões, a solução apareceu. Sim, os corpos caem por igual, se desprezarmos a resistência do ar, mas ao acrescentarmos nas equações as resistências e os atritos, aparece que a bicicleta de maior massa vai descer mais rápido. Como 20 kg equivale a 4 garrafões de água, eu propus que ele carregasse 4 garrafões em nossa próxima aventura para igualarmos as condições. Ele não aceitou e me propôs que eu perdesse esses 4 garrafões de “musculatura” gordinha, que tenho em excesso :-(
No fim dessas descidas sempre havia algum pequeno vilarejo com castelos, muralhas, construções seculares, que se integraram na vida moderna e que se transformaram em destinos turísticos.
A fronteira entre Espanha e França foi alcançada após uma dura subida. Uma casinha velha abandonada marca o lugar onde outrora havia guardas armados e burocratas carimbando passaportes.
Agora, simplesmente você passa, olha e fica imaginando que lindo será o dia em que o mundo todo seja assim: sem fronteiras, sem barreiras, com infraestrutura para todos viverem decentemente, sem guerras e sem miséria. Ainda é um sonho, uma utopia, mas creio que passo a passo caminha-se nessa direção.
Na primeira cidadezinha depois da bela descida desde a fronteira, conheci uma pessoa um tanto quanto “excêntrica”. Ele tem um carro preto e, no verão, debaixo do Sol abrasador, o carro ficava muito quente. Então decidiu resolver o problema: fez um furo no teto, tirou o banco do passageiro, colocou um cano e, quando ele para o carro no Sol, abre um grande guarda-sol para que o carro fique na sombra! Quando não é verão ele tampa o cano com flores de plástico e o carro fica enfeitado. Não acredita? Tenho a foto! Ah, só para se divertir colocou um pequeno Farol também enfeitado com flores plásticas, para tampar um furo da primeira tentativa (que não deu certo) de colocar o Guarda-Sol.
Ao atravessar a fronteira deparei com um fato marcante: esta região se denomina Catalunha e, os catalães com quem conversei disseram que eles não se sentem espanhóis, mas sim catalães. Existe um forte movimento separatista que luta para tornar a Catalunha independente.
Lá se fala catalão, não o espanhol. Todos os letreiros são em catalão e as pessoas buscam manter as tradições catalãs em seu modo de viver.
Se por um lado, isto tem uma certa beleza pois mantém vivas as tradições e a cultura da região, por outro lado, separar-se, enfraquece a economia de ambos e as consequências econômicas podem ser ruins para ambos, Espanha e Catalunha. Não sou experto nestes assuntos e nem me considero apto a emitir um parecer a favor ou contra, mas creio que deveriam refletir mais antes de defender separatismos.
Finalmente, após mais dois dias de pedalada chegamos a Barcelona! A igreja da Sagrada Família, obra de arte de Gaudí ainda por acabar.
Ingressos a mais de 40 euros (cerca de 250 reais!) e só podiam ser comprados com um dia de antecedência por internet. Bonito? Sim. Obra de arte? Sim. Caça-níquel? Sim. A cidade é cheia de edifícios e casas com assinatura de grandes artistas.
Mas eu não me sinto à vontade. Muitas pessoas, lojas, lojas, lojas, bares e restaurantes, desfile de modas das diferentes tribos. Que significado tem viver assim? Consumir o que não é necessário, exibir marcas para identificar-se com a sua tribo? Falar em ecologia e defender o verde vestindo roupas feitas com fibras sintéticas e produzidas em países onde se explora a miséria? Falar em reduzir o CO2 e usar um carro híbrido para mostrar uma “pegada” verde, sem ter feito as contas e perceber que ele, para ser produzido, gerou mais CO2 do que um carro normal e que a eletricidade que ele usa para funcionar foi gerada por queima de combustível fóssil? Além disso, empurra o problema do lixo das baterias elétricas.
Não, não me sinto bem em lugares assim. Ainda prefiro as coisas simples e a "arquitetura" da natureza.
Admito ser inviável, nos dias de hoje, mesmo em diferentes estilos de vida, viver sem produzir CO2, mas poderíamos pensar melhor sobre como gerar energia limpa…. ou quase.
Obrigado amigos, até o próximo blog e, não se esqueçam que as restrições do Covid-19 se reduziram e já podemos programar passeios pelo Canal do Midi (veja blog anterior sobre o canal). Se vierem para a França e desejarem reservar, por favor entrem em contato pelo meu email diretamente crapun@gmail.com
Ainda existem algumas poucas semanas disponíveis para as férias do ano que vem.
Abraços
Até a próxima
Olá...que 2022 traga leveza para todos! Texto excelente! Gostei muito e como conheço esse trecho me "senti" pedalando com vocês! Muito boa empreitada! Tudo de bom sempre! Paz e bem!
É sempre com prazer ler os seus textos. Obrigado.